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(Fotografia roubada com muito descaramento ao Facebook da editora Tinta da China)
Livro
Sou uma leitora tardia do Ricardo Araújo Pereira (R.A.P.). Daquelas leitoras que só chegaram à sua escrita já balzaquianas. E asseguro-vos, como em tudo, essas são as piores. Devo pertencer a uma minoria, aqueles que só despertaram para os Gato Fedorento quando eles já tinham uma legião de fãs. Se bem me lembro, foi a minha irmã e os meus primos — a família é essencial para nos mostrar como andamos no mundo por ver andar os outros — que num Natal qualquer se deram conta da minha ignorância relativamente a sketches que todos sabiam de cor. Aconteceu-me o mesmo mais recentemente quanto à Mixórdia de Temáticas, na Rádio Comercial. Também não tenho Meo, o que facilita a ignorância. Mas como sou velha lembro-me da época da euforia do blogue O Meu Pipi e dos seus livros. Mas isso também não me serviu de nada porque pertenço à maioria dos que não sabiam quem é o autor de O Meu Pipi.
Por isso posso afirmar que 2013 foi o ano em que descobri o escritor Ricardo Araújo Pereira. Em que li os seus livros, em vez de uma crónica dispersa aqui e acolá. E por causa dele percebi que sou bipolar. No mesmo dia, num espaço de horas, pego num livro de crónicas dele e acho que é um génio (embora quando o assunto é futebol fique um bocadinho toldado por ódios de estimação). A seguir ligo a televisão, está a ser entrevistado por causa dos seus livros e só o vejo a desconversar. Rapidamente o génio desaparece pelo gargalo da garrafa adentro (embora já tenha lido entrevistas muito boas).
Lembro-me então das vezes em que já assisti a Ricardo Araújo Pereira a improvisar numa conferência ou a apresentar um livro e a sua inteligência, humor e agudeza de espírito voltam a imperar. Imagino que não deve ser fácil ser o Ricardo Araújo Pereira todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os segundos. Quanto mais ser-se génio. O que eu sei é que, ao lê-lo, sei que ele o é. Por isso Novíssimas Crónicas da Boca do Inferno — que reúne crónicas que foram publicadas na revista Visão entre 2009 e 2013 ilustradas por João Fazenda, editado pela Tinta da China e publicado depois de lhe ter sido atribuído o Grande Prémio da Crónica APE 2012 — é um livro que não se pode deixar de ler.
É olhar para o retrato que R.A.P. faz de Portugal e perceber que sim, que há saída e que faz sentido estarmos aqui. É recordar Shakespeare e outros clássicos embalados pelo quotidiano do século XXI. É recordar palavras e expressões que já não ouvíamos desde a infância no Norte. Numa das minhas crónicas preferidas deste livro, dedicada a explicações sobre o Acordo Ortográfico e “Contra o corte cego da consoante muda”, R.A.P. diz que não é muito dado a beijos e abraços. Quando quer explicar a uma pessoa que gosta dela, tem de recorrer a outros estratagemas. “A minha avó cozinhava. Ou esperava por mim à janela. Eu digo coisas. Deu-me para isto. Faço tudo o que é importante com palavras porque não sei fazer de outra maneira. Acho que foi isso que me atraiu na actividade de fazer rir as pessoas: trata-se de provocar uma convulsão física nos outros — mas sem lhes tocar. O Marquês de Sade gabava-se de produzir este e aquele efeito nas senhoras. Sim, mas a tocar também eu. Gostava de ver o sr. Sade fazer com que alguém se contorcesse sem contacto físico” (pág. 212).
Tal como o autor, também tenho alguma afeição por quem consegue fazer isso. Bem que vos tinha avisado, deus nos livre de leitoras balzaquianas.
(Recomendação publicada na revista 2, no dia 27 de Outubro de 2013)